No dia 14 de outubro de 1964, a aldeia de Lourosa, no concelho de Vila da Feira, acordou cercada e ocupada por centenas de soldados da GNR e agentes da PIDE, às ordens do governador civil de Aveiro, Manuel Ferreira dos Santos Lousada. Esse enorme dispositivo bélico, a que não faltavam numerosas ambulâncias, tinha por objetivo cumprir as ordens da Diocese do Porto que mandara substituir o pároco de Lourosa, Damião Olindo das Neves Basto, de 26 anos, transferido para uma paróquia de Santo Tirso.
A população de Lourosa opôs-se a essa medida, mesmo sob ameaças constantes do Paço Episcopal e das autoridades civis, pois confiava nesse padre, que visitava as fábricas de cortiça, acompanhava os jovens, “jogava sueca e bilhar nos cafés” e, sobretudo, nada cobrava “a quem não podia pagar”. Até algumas fábricas abriram os portões para que os operários pudessem ir defender o padre Damião, acorrendo à vigília que se organizara no largo da igreja, tocando muitas vezes a rebate os sinos e gritando o povo “Damião é nosso, ninguém o leva!”
Como afirmaria o comunicado do governo civil de Aveiro, datado de 15 de outubro, “levantou-se pertinaz resistência à transferência do padre coadjutor” e “a população da freguesia cercou a residência do pároco, ignorou as ordens da Diocese, desrespeitou as solicitações do Vigário”, mantendo-se “em permanente vigilância, de dia e de noite, disposta a resistir.”
E o mesmo comunicado acrescentava que “ao contrário do que era de esperar e de desejar, os amotinados mais indícios passaram a dar de rebelião agressiva para com tudo e todos.”
Na mesma linguagem, o governador civil informava terem sido “tomadas as providências policiais adequadas para o efeito.”
Em consequência, “ontem, pelas 10 horas e 30 minutos, e depois do último convite à boa razão, a G.N.R. procedeu à libertação do reverendo padre, que foi entregue no Paço Episcopal do Porto” – curiosa versão da prisão do padre Damião pela GNR…
E prossegue o comunicado: “Teve porém a força da ordem de responder aos diversos ataques à pedrada da população enfurecida, estabelecendo-se a confusão, disparando alguns tiros para o ar [sempre o mesmo argumento!], tendo na luta aparecido duas mulheres gravemente feridas que, lamentavelmente, vieram a falecer, uma já afastada do local da desordem, na povoação, e outra a caminho do Hospital de S. João da Madeira”.
E termina: “a partir das 11 horas de ontem, ficou restabelecida a ordem naquela freguesia”.
Deste modo, com “tiros para o ar”, mais uma vez o regime fascista assassinou dois elementos do povo, registando-se ainda numerosos feridos e, nos dias seguintes, diversos presos nos calabouços da Polícia Judiciária do Porto que, no entanto, vieram a ser libertados algum tempo depois.
Ficaram pelo caminho duas jovens de Lourosa, Rosa Vilar da Silva e Maria de Lourdes Oliveira.
NOTA:
O bispo do Porto, António Ferreira Gomes, saíra do país a 24 de julho de 1959, tendo sido impedido de regressar. Só conseguiria voltar do exílio em 1969.
- cfr. “avante!” n.º 348, Série VI, de novembro de 1964, sob o título “Um crime premeditado!”, em que refere o número de ambulâncias que logo seguiram com as forças da GNR, embora atribuindo a data de 16 de outubro aos acontecimentos.
- cfr. “Cerco ao Cortiçal”, de Rosa da Silva, 2013
- cfr. “É o povo que contará a história da aldeia que se uniu pelo seu padre”, de Sara Dias Oliveira, “Público” de 19 de outubro de 2015
- Em 1969, Bernardo Santareno publicou a peça de teatro A Traição do Padre Martinho, inspirada nos acontecimentos de Lourosa. Essa peça, impedida de ser representada em Portugal, seria levada a Cuba por Rogério Paulo, tendo estreado na cidade de Havana a 21 de novembro de 1970, representada pela companhia cubana Rita Montaner. Essa representação contou ainda com música de Carlos Paredes sobre uma canção de José Afonso e de Luís Oliveira Andrade e terminou com a canção popular Canta, Camarada, Canta, entoada pelos atores irrompendo pela sala, ao mesmo tempo que distribuíam os versos que cantavam.
- Em 24 de Outubro de 2015, realizou-se em Lourosa, em evocação dos acontecimentos de 1964, um espetáculo multidisciplinar, organizado pela Companhia Persona, sob a direção artística de Lígia Lebreiro, com a participação da Orquestra Criativa de Santa Maria da Feira e de coletividades, artistas e população de Lourosa.