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Maria da Conceição Rodrigues de Matos

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Data da primeira prisão

Mulher de rara fibra, de muita coragem e grande dignidade, Conceição Matos cativa pela doçura. Resistente contra a Ditadura e militante do PCP, ficou especialmente conhecida pelas humilhações e torturas a que foi sujeita pela PIDE, na sua prisão.

Nasceu em 1936 em São Pedro do Sul e, com apenas 3 anos de idade, mudou-se para o Barreiro, para uma «barraca de madeira» que partilhava com os pais e irmãos no Bairro das Palmeiras.

Iniciou a sua intervenção política (levada pelo irmão, Alfredo Matos) no MUD-Juvenil, mas é na década de 50, após conhecer Domingos Abrantes (seu futuro companheiro), que ingressa no PCP. Viveram anos na clandestinidade, como funcionários do Partido Comunista e casaram na cadeia de Peniche, em 1969.

Conceição Matos foi detida (com Domingos Abrantes) no dia 21 de Abril de 1965 e ficou um ano e meio presa. Foi vítima de alguns dos métodos de tortura mais cruéis e humilhantes praticados pela PIDE. Muitas das histórias sobre os abusos efectuados pela polícia política do Estado Novo ficaram no anonimato. Muitas mulheres morreram, outras recusaram-se a contar o que lhes aconteceu. Mesmo volvidas quase quatro décadas sobre a sua prisão, Conceição Matos, funcionária reformada do PCP, rejeita silenciar o que então se passou e aceita contar na Comunicação Social os dias de tortura. Não por razões pessoais, mas porque considera que é muito importante denunciar a polícia política do regime fascista.

Foi presa por altura do assassinato do General Humberto Delgado, divulgado pela polícia espanhola no dia 25 de Abril de 1965 após a descoberta dos cadáveres de Delgado e da sua secretária brasileira, Arajaryr Campos. Quatro dias antes, por volta das quatro da madrugada, uma brigada de agentes da PIDE, acompanhada por guardas da GNR, invadiu a casa onde, no Montijo, viviam Conceição Matos e o seu companheiro, Domingos Abrantes. Conceição Matos conta que, primeiro, bateram à porta e, depois, como se ninguém respondesse, arrombaram-na com um pé-de-cabra, irrompendo pela casa dentro e vasculhando todas as divisões. Conceição, já desperta e treinada nas vicissitudes da clandestinidade, tivera o tempo suficiente para queimar os papéis comprometedores da organização à qual pertencia, o Partido Comunista Português. Já dentro do quarto, a polícia política apontou-lhe pistolas, ordenou-lhe que pusesse as mãos no ar e que se identificasse. Silêncio. O mesmo silêncio que Conceição manteve nos interrogatórios, durante os longos e tormentosos meses de cárcere em Caxias e, também, quando regressou à prisão pela segunda vez, em 1968.

No dia 21 de Abril, o tempo parecia estar suspenso. Desde as quatro da manhã que Conceição Matos, mantida sob prisão em casa, tentava resistir à angústia da espera: os «pides» aguardavam que Domingos Abrantes, seu companheiro, chegasse, enquanto ela pensava no «sinal de alerta» (aviso permanente de que não podia entrar em casa - que só era retirado quando tudo estava em ordem...), que se habituara a colocar num poste de electricidade localizado próximo da sua habitação.

A angústia adensava-se enquanto as horas passavam (entre as seis da manhã e as 22 horas). Os «pides» levaram então Conceição para a sede da polícia política, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Muito mais tarde, ela haveria de saber o que, afinal, acontecera naquele terrível dia. «Por azar», conta, «nesse mesmo dia, o sinal de alerta tinha sido retirado do poste por causa de uma obras». Domingos Abrantes não conseguiu escapar. Conceição só soube o que aconteceu algum tempo mais tarde, quando o destino do seu companheiro lhe foi comunicado através de alguns camaradas, igualmente encarcerados em Caxias.

«Presa pela Delegação em 21-4-1965 por actividades contra a Segurança do Estado, tendo recolhido ao Depósito de Presos de Caxias» - é este o primeiro parágrafo da sua ficha da PIDE. Segue-se a punição de um mês sem receber visitas, o julgamento e a condenação a 18 meses de prisão preventiva, a suspensão de direitos políticos. Mas também os valores das indemnizações ao Estado e do Imposto de Justiça.

Em nenhuma frase, em nenhuma palavra deste processo, se vislumbra sequer um fugaz indício do ror de torturas físicas e psicológicas a que Conceição Matos esteve submetida aquando da sua primeira detenção. Ela, que sofreu das piores humilhações infligidas a mulheres presas, que foi espancada, sovada durante vários dias, despojada das suas roupas, obrigada a urinar e a defecar numa sala de interrogatório e a limpar a sujidade com aquilo que trazia vestido.

Em nenhuma ficha da polícia política existem menções sobre os maus tratos a que eram submetidos os presos políticos. Em nenhum processo consta a diversidade dos métodos de tortura, das pérfidas tácticas utilizadas pelos inspectores, escolhidos a dedo, para «dirigir» os interrogatórios. Tentou-se ocultar a crueldade, propondo-se recolher a impunidade num futuro que uns julgavam longínquo, outros inexistente.

Para Conceição Matos estas memórias permanecem incólumes, ainda que ensombradas por momentos que prefere não reproduzir. Alguns deles foram, porém, reconstituídos em diversos depoimentos (publicados em livros e jornais).

«Quem vê aquele processo sabe que eu nunca falei à polícia. Apesar de tudo...», afirma, uma vez mais, recordando que foi ainda dentro das celas de Caxias que primeiro lhe elogiaram a resistência.

«Coragem hoje, abraços amanhã», responderam uns camaradas, presos nas celas contíguas, quando ela aprendeu a decifrar os toques que costumava ouvir durante a noite. «A primeira frase que decifrei foi «tens um selo que vendas a um camarada nosso» e até hoje não sei qual o significado. Depois comecei também a experimentar uns toques e perguntaram logo quem eu era. Eu disse o meu nome, quiseram saber se eu já tinha sido interrogada, disse que sim e perguntaram «falaste?», «não» e eles responderam «coragem hoje, abraços amanhã».

Após as torturas a que foi submetida na António Maria Cardoso, Conceição regressou a Caxias - o «depósito», segundo a nomenclatura do Estado Novo. Apresentaram-lhe uma carta que diziam ter sido escrita por Domingos Abrantes, em que o seu companheiro lhe rogava que falasse, e disseram-lhe que ele tinha confessado tudo. Nunca acreditou. (A mesma táctica fora também usada com Domingos Abrantes, antes de este dirigente comunista ter sido torturado).

As sequelas físicas e psicológicas daqueles dias de tortura tardaram a desaparecer: nos momentos em que as presas, suas companheiras de cela, podiam ir para o chamado «recreio», ela nunca as acompanhava. Sentava-se num qualquer canto e iniciava uma lenga-lenga imperceptível - repetia vezes sem conta a expressão «caixa de fósforos». Lembrava-se apenas que as palavras correspondiam a um qualquer sinal de alerta dentro do partido, mas não conseguia fazer a respectiva associação ao vocabulário da clandestinidade.

Conceição Matos haveria de ser novamente presa em 1968. Regressou a Caxias e ali ficou, em total isolamento, durante dois meses e alguns dias. Só quando saiu é que tomou conhecimento da morte de Oliveira Salazar e da nomeação de Marcelo Caetano. Prosseguiu o seu trabalho (no âmbito do PCP) junto da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e quando Domingos Abrantes foi libertado, em 1973, o casal regressou ao trabalho clandestino do PCP. Desta vez, para fora do país.

Quando aconteceu a Revolução dos Cravos, Conceição Matos e Domingos Abrantes estavam em Paris. Viajaram de avião para Lisboa, juntamente com Álvaro Cunhal e muitos outros exilados.