Cidadão antifascista, um militante que lutou pelos seus ideais e por causas, tendo sempre no seu horizonte a Liberdade. Um «revolucionário romântico» activo, imaginativo, corajoso e pessoalmente desinteressado. Um homem muito delicado e de trato muito afável. Ficou conhecido por ter protagonizado o primeiro desvio de um voo comercial de que há registo, em que um avião da TAP sobrevoa Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro, a baixa altitude, para lançar cerca de 100 mil panfletos com apelos à revolta popular contra a ditadura. Mas a sua acção política foi muito além disso.
Hermínio da Palma Inácio nasceu a 29 de Janeiro de 1922 em Ferragudo, então uma pequena aldeia de pescadores da costa algarvia; filho de um humilde operário ferroviário, passou a juventude em Tunes, concelho de Silves.
Terminado em Silves o curso secundário industrial, alista-se aos dezoito anos na Aeronáutica Militar e é enviado para a Base Aérea da Granja do Marquês (Sintra). Aí completa o curso de mecânico e atinge o posto de sargento. Consegue também o «brevet» de piloto civil. Durante o serviço militar estabelece relações com alguns oficiais contrários ao regime salazarista.
Iniciou a luta antifascista com a sua adesão ao «Golpe dos Militares», em 10 de Abril de 1947, um movimento desencadeado pelo general Godinho e pelo almirante Cabeçadas e que contou com a participação de alguns civis, entre os quais João Soares, pai de Mário Soares. Uma das ações consistia em imobilizar os recursos da Base Aérea da Granja do Marquês, onde Palma Inácio havia prestado serviço na companhia do oficial da Força Aérea Humberto Delgado.
«Como tinha sido sargento mecânico na Granja do Marquês, aliciaram-me para sabotar alguns aviões militares e um Dakota em que normalmente viajava Santos Costa.» (Palma Inácio em entrevista á revista História, Setembro de 2000).
Bom conhecedor do terreno, encaminha-se pois para aí na companhia de outro mecânico, Gabriel Gomes, e entre os dois cortam os cabos de comando de vários aviões Tiger Moth, T-6 e DC3, e do Dakota.
A conjura é cancelada à última hora e a polícia lança uma vaga de prisões. Na iminência de ser detido, o jovem revolucionário refugia-se numa casa de Lisboa e depois numa quinta em Odivelas, onde aparenta ser estudante em férias.
Esta acção acabou por lhe valer sete meses de clandestinidade nessa quinta, seguindo-se a sua detenção pela PIDE
Denunciado por alguém que vira a sua fotografia afixada no posto local da GNR, Palma Inácio é preso e dá entrada no Aljube. «Passei cerca de meio ano a aguardar julgamento. Instalaram-me nos curros. Eu tinha levado a cabo a única operação bem-sucedida da revolta. Queriam saber a todo o custo quem me tinha dado a ordem. Torturaram-me. Cheguei a ter os pés tão inchados, que não cabiam nos sapatos.»
Havendo-se recusado a revelar o nome do oficial que o encarregara da missão de sabotagem, é submetido à tortura do sono e «estátua», por doze dias consecutivos, seguidos por cinco meses de incomunicabilidade numa das celas onde mantinham os presos isolados (tinham quatro metros por um, eram os chamados «curros» ou «gavetas»).
Quando o chefe da cadeia do Aljube lhe disse «Vais morrer aqui», respondeu-lhe «Vamos a ver». O polícia retorquiu «Só se fugisses, mas é impossível». «Vamos a ver», respondeu. «Se me disseres quem te deu a ordem sais daqui já. Se não falares vais morrer ao Tarrafal.»
Através das grades da cela, passou meses a observar os movimentos da sentinela que, mesmo por baixo, andava para trás e para diante: «Preparei cuidadosamente a fuga. Sem praticamente apoios nenhuns. Decidi fugir pela única janela sem grades do Aljube. Era uma sala de visitas, a dar para o saguão, utilizada pelos guardas como apoio na condução dos presos isolados a uma casa de banho contígua. Tinha de resolver vários problemas: ser isolado para esse lado do Aljube, acompanhar um grupo de presos que soubessem da fuga a essa sala de visitas, arranjar dois ou três lençóis extras porque a altura era grande, e saltar para o saguão vigiado por um GNR, explorando o efeito de surpresa. Depois, descer as escadas do saguão que dão para a rua, anular a reação do guarda da GNR que montava guarda na porta principal da cadeia e, mais importante ainda, fazer tudo isto de manhã, quando a Rua da Sé estava cheia de gente, por forma a impedir que disparassem sobre mim. Era também o momento em que as casas de banho principais estavam ocupadas, e a única altura em que os presos eram levados para a tal sala de visitas.»
À espera do julgamento, Palma Inácio foi preparando a fuga. Na manhã de 16 de Maio de 1948, com quatro lençóis enrolados nas pernas, debaixo das calças, juntou-se aos outros reclusos, na fila para a casa-de-banho. Um breve momento de ausência do guarda permitiu-lhe lançar-se pela janela, numa altura de cerca de 15 metros do chão, caindo no exterior do edifício junto à sentinela, que não teve tempo de reagir. Palma Inácio pôs-se em fuga, desaparecendo no meio da multidão.
Com a PIDE de novo à sua procura, seguiu para Marrocos, de onde, após várias peripécias pelos mares, consegue chegar aos Estados Unidos da América. O «brevet» de piloto garantiu-lhe a sobrevivência, mas as autoridades acabaram por localizá-lo, obrigando-o a abandonar o país. O destino foi o Rio de Janeiro, juntando-se assim a outros antifascistas que do exterior procuravam meios para acabar com o regime fascista em Portugal. Estava-se em 1956 e Palma Inácio contava 34 anos.
Dois anos depois, a luta antifascista agitou-se com a candidatura do General Humberto Delgado às eleições presidenciais e o exílio deste no Brasil, onde pouco tempo depois se refugiou também o capitão Henrique Galvão.
Palma Inácio, acompanhado de Camilo Mortágua, Amândio Silva, Maria Helena Vidal, João Martins e Francisco Vasconcelos, preparou então uma operação que haveria de acordar Lisboa de espanto – na manhã de 10 de Novembro, um avião da TAP, que partira de Casablanca, é desviado para sobrevoar a capital, onde são lançados milhares de panfletos antifascistas. Os caças da Força Aérea não conseguem interceptar o avião, que regressa incólume a Casablanca.
De regresso ao Brasil, o grupo confrontou-se com a necessidade de procurar financiamento para as suas operações. Começou assim a preparação do assalto à dependência do Banco de Portugal na Figueira da Foz, concretizada em Maio de 1967 com Camilo Mortágua, António Barracosa e Luís Benvindo. Um projecto a que deram o nome de «Operação Mondego», e que seria a primeira atuação da LUAR. O plano foi meticulosamente estudado e, para ser posto em prática, Palma Inácio fez-se passar por um arqueólogo brasileiro interessado em estudar as ruínas de Conímbriga. Com o pretenso fim de conseguir fotografias aéreas foi-lhe facultado o uso de um avião. Uma vez assegurado um possível êxito, a 17 de Maio de 1967, minutos antes das quatro da tarde, hora do encerramento da agência, Palma Inácio com Camilo Mortágua, António Barracosa, e Luís Benvindo entram pelas instalações e em breve saem com três sacos contendo mais de 29 000 contos, a caminho da fronteira espanhola. Fora um rude abalo ao prestígio do Estado, mas na realidade não muito rentável para a LUAR.
Nesta altura, o movimento antifascista estava concentrado em Paris, onde acaba por nascer a LUAR – Liga de Unidade e Acção Revolucionária –, que reivindicou o assalto como operação manifestamente política.
Na capital francesa, Palma Inácio planeou outro golpe, que acabaria por fracassar: tomar a cidade da Covilhã. Desta vez, é detido pela PIDE. Conseguiu fugir da prisão do Porto serrando as grades da cela com lâminas que a sua irmã lhe fizera chegar. (Esta acção teve a ajuda de um informador da PIDE de alcunha «o Canário»). Os inspectores da PIDE Sachetti e Barbieri Cardoso sabiam da existência das lâminas, mas nunca as conseguiram localizar, apesar das inúmeras revistas à cela.
A PIDE transmite a sua fotografia pela televisão, oferece uma recompensa de 50 mil escudos por informações que levem à sua recaptura, mas tudo sem resultado. É no entanto detido em Madrid e enviado para a prisão de Carabanchel. Um pedido de extradição não é deferido pelo Governo Espanhol. Expulso do país, fixa-se na capital francesa.
Entre 1969 e 1973 são levadas a cabo diversas operações, tanto em Portugal como no estrangeiro. Elementos da organização chegam a ser presos em França, acusados de assaltos a bancos, nomeadamente ao Banco Franco-Português do Ultramar, Entre 1970 e princípios de 1972, «a LUAR introduziu em Portugal 1000 quilos de explosivos plásticos; 2000 detonadores pirotécnicos; 1000 detonadores elétricos; 500 metros de cordão detonante; 500 metros de cordão mecha lenta». A maioria deste material teria sido apreendida pela polícia.
Em Maio e Junho de 1971 são assaltados, respetivamente, o Consulado de Portugal em Roterdão e o Consulado de Portugal no Luxemburgo, de onde são desviados passaportes, bilhetes de identidade, cédulas, licenças militares, carimbos e máquinas num valor estimado em cerca de 145 contos.
Em novembro 1973 Palma Inácio entra de novo em Portugal com outro grande projecto, o de sequestrar alguma alta personalidade do regime, que seria trocada por presos políticos. Uma quebra das regras de segurança da LUAR leva a polícia a procurar um suspeito numa tasquinha das Avenidas Novas. A surpresa foi que esse suspeito, disfarçado com uma peruca, era Palma Inácio. Violentamente espancado ainda na rua, antes mesmo de chegar à sede da DGS e durante a noite, entra num estado de pré-coma.
Em Janeiro de 1974, há protestos (Comité de Apoio á Luta do Povo Português) contra as torturas de que é vítima Palma Inácio, infligidas pela PIDE/DGS, encontrando-se este antifascista em estado grave no hospital.
Cinco meses depois, na sua cela, recebeu, em código morse feito pela buzina de um carro, nas imediações de Caxias, a primeira notícia de que um golpe militar estava em curso. No dia seguinte, a 26 de Abril, chegou a ordem de libertação dos presos políticos. Contudo, Palma Inácio foi o último a sair, pois alguns militares, que recusavam ver o assalto à Figueira da Foz como uma operação política, resistiram à sua libertação.
Conforme sustenta o advogado e político António de Almeida Santos no livro Quase Retratos (Notícias Editoral, Lisboa), Palma Inácio pautou sempre a sua acção política por um desejo escrupuloso de evitar derramamento de sangue.
Em agosto de 1975 realiza-se o 1º Congresso da LUAR e, no mesmo ano, Palma Inácio é candidato a deputado nas listas do PS. Em 1976 A LUAR foi extinta.
A 13 de Maio de 2000, Jorge Sampaio, sucessor de Mário Soares na Presidência da República, atribuiu, (pela mão de Manuel Alegre), a «Grã-Cruz da Ordem da Liberdade» a Hermínio da Palma Inácio.
Em 2005, foi-lhe atribuída uma pensão de € 203,5 ilíquidos. Morreu no dia 24 de Julho de 2009, com 87 anos, pobre, num lar modesto.
«Foi uma notícia muito dolorosa, apesar de esperada, a morte de Hermínio da Palma Inácio. Éramos amigos muito próximos - e camaradas - há dezenas de anos. Foi um herói, um verdadeiro mito, da resistência ao salazarismo. Morreu pobre, desinteressado de bens materiais, ao cabo de longa doença, ajudado pelos amigos, que já mal conhecia.» - Mário Soares, em declaração escrita em sua memória.