COTONANG E LAGOS & IRMÃO
A cultura obrigatória do algodão foi adotada em Angola em março de 1947, quando o governo português atribuiu à COTONANG (Companhia Geral dos Algodões de Angola), um consórcio luso-belga criado em 1926, uma concessão de cerca de 80.000 Km2 na Baixa do Cassange. Mais tarde, uma outra empresa, Lagos & Irmão, tornou-se igualmente beneficiária de outra extensa concessão na mesma região algodoeira.
A Baixa de Cassanje compreende as aldeias de Cambo Sunginge, Zungue, Kanzage, Wholo dia Coxi, Santa Comba (?!), Mulundo, Teca dia Kinda, Xandel, Moma, Iongo Milando e Massango (Forte República) nos municípios de Cahombo, Marimba, Cunda dia Baze e Quela.
A “economia do algodão” estava baseada no seu cultivo obrigatório, organizado através do recrutamento forçado das populações, abrangendo cerca de 150.000 camponeses, agrupados em 35.000 famílias. As companhias não pagavam salários e, no final de cada colheita (cerca de 5.000 toneladas/ano), esses camponeses eram obrigados a vender o algodão à Cotonang e à Lagos & Irmão, a preços fixos, 5 ou 6 vezes abaixo dos valores de mercado. Deste modo, os camponeses assumiam integralmente o risco das colheitas, ficando quase sempre devedores das empresas monopolistas.
O sistema era ainda agravado pelo facto de as milícias ao serviço das companhias e os cipaios dos chefes de posto impedirem outros cultivos, obrigando os camponeses a ir procurar alimentos para as famílias em áreas cada vez mais afastadas das suas aldeias, tornando endémica a fome em toda a região.
Como escreveria, logo em 08-02-1961, o Brigadeiro Fernando Pinto de Resende, Comandante da 2ª Região Aérea, “a cultura do algodão é uma exploração infame dos indígenas e, portanto, geradora do maior antagonismo para com este tipo de trabalho obrigatório” – “quando têm o infortúnio e perdem a cultura toda (…) recebem zero por um ano de trabalho”.
Como testemunha o Bispo José Kipungo, natural de Xa-Muteba (Angola nos Trilhos da Independência, Associação Tchiweka de Documentação):
"Os chefes de posto tinham os cipaios, os capatazes, que eram os que dirigiam o cultivo de algodão e sempre que notassem que um determinado povo de uma sanzala não estava a cultivar o algodão tal como o governo gostaria que fosse ou que a Cotonang exigia, então o soba era queixado e chamado e repreendido.
… Se o povo incumprisse, quem pagava era o soba. E eu assisti algumas vezes o meu pai a apanhar palmatórias a mando do Chefe de Posto.”
No Luremo o agente da Cotonang informava que “os indígenas da região da fronteira com o Congo belga andam muito indisciplinados, não cumprindo com instruções mesmo do chefe de posto, ameaçando fugirem em massa para aquele território”. Aos padres da missão do Musuku “deixaram de ter respeito...Os indígenas negam-se a trabalhar nas estradas e até ao pagamento do imposto, afirmando que do outro lado da fronteira são livres, não tendo que cumprir ordens dos brancos”.
A REVOLTA
Em outubro de 1960, os camponeses da Baixa do Cassange recusaram receber das empresas sementes de algodão para semearem em janeiro, queimando muitas dessas sementes – as companhias distribuíam as sementes, mas as lavras eram feitas onde os seus capatazes indicavam, por vezes a muitos quilómetros das áreas de residência.
A população da Baixa do Cassange era na sua maioria constituída por elementos das etnias dos Maholos e dos Bangalas, que se estendiam para lá da zona fronteiriça do rio Cuango e que, naturalmente, seguiram de perto a independência do Congo belga, em 30 de junho de 1960, partilhando aspirações e também cultos messiânicos, como o do Quimbangismo, religião sincrética fundada por Simon Kimbangu, que defendia o renascimento de África e o resgate da identidade africana.
Aparece, aliás, referido o papel destacado de um certo António Mariano – que alguns ligam às referências (messiânicas?) a “Maria”, ficando mesmo o massacre conhecido por vezes como “A Guerra da Maria”.
Em simultâneo, aparece também aludida a influência do PSA (Parti Solidaire African), dirigido por Antoine Gisenga, cujos enviados teriam inspirado e apoiado a revolta da Baixa do Cassange.
E aparecem referências diretas a Lúcio Lara e Mário Pinto de Andrade como “elementos que ao serviço do comunismo internacional” espalham “ensinamentos tácticos de ordem subversiva”, numa curiosa mistura da UPA, FRAIN e MPLA – tudo referido na Circular n.º 4285/61, de 21 de fevereiro de 1961, mandada distribuir pelo Comandante-Chefe das Forças Armadas de Angola, general António Miguel Monteiro Libório, que anteriormente comandara a repressão em Goa.
EPISÓDIOS
Contam os mais velhos e sobreviventes da chacina que tudo começou às primeiras horas da manhã de 4 de janeiro, 5, 6 horas, quando camponeses se rebelaram contra o esquema de escravidão implantado pelas empresas algodoeiras. Os soldados que dispararam as balas mortíferas naquela manhã tinham acampado desde as 17 horas do dia 3 de janeiro, na sede municipal do Quela e saíram de lá às primeiras horas de 4 de Janeiro”.
Na Regedoria de Kunda Dya Base, eles perguntavam (Angola nos Trilhos da Independência, ATD) : «Soba Kunda, vai se apresentar?». E respondíamos: «Ninguém vai se apresentar. Já cumprimos muito. Desde os nossos bisavós, quando veio o colono, até agora, connosco. Estamos cansados. Sempre com o mesmo sofrimento. Hoje é nosso tempo. Ninguém mais vai cumprir estes mandatos. Se morrermos, mais vale a pena morrer do que ficar na escravatura».
Eles mandaram abrir fogo, dia 5 de Fevereiro.
No dia 11 de janeiro, a 3ª Companhia de Caçadores Especiais, sedeada em Malange, destacou para Milando uma patrulha, que ali chegou na madrugada do dia 12, encontrando a população branca bastante alarmada: o chefe de posto informou, então, que os nativos das sanzalas de Ganga-Mexita e Quivota, respetivamente a 5 e 9 quilómetros da povoação, se tinham recusado a trabalhar. Na manhã do dia seguinte soube-se que fora assassinado um capataz mestiço da Cotonang. No dia 22, ocorreu idêntica rebelião em Tembo Aluma, por parte de 300 nativos.
A rebelião manifestou-se depois em Cunda-Ria-Baza, Quela, Marimba, longo e Xamuteba. Em pouco tempo a sublevação estendeu-se a toda a Baixa do Cassange, com a adesão dos bangalas e dos maholos, sobre os quais o PSA (Parti Solidaire African) exercia forte influência e teria convencido os indígenas de que as balas dos brancos eram “Maza” (água) - perante as "nuvens de amotinados", como se escreveu nos relatórios militares, não havia "outra forma de os convencer senão mostrar-lhes que as balas dos militares não eram água (...) À custa de baixas, os povos foram acalmando e recomeçaram os trabalhos".
No dia 1 de fevereiro mais de mil nativos concentraram-se próximo de Cunda-Ria-Baza e, no dia 2, os europeus desta povoação fugiram para Malange.
No Relatório Especial de Informações de 2 de fevereiro, o Comando Militar de Angola informa o Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas, em Lisboa, que “cerca de 600 trabalhadores voluntários das prospecções mineiras ao longo do rio Cuango abandonaram o trabalho".
A 4ª Companhia de Caçadores Especiais, entretanto, iniciou a "Operação Cassange", partindo de Malange em direção a Quela, mas as tropas portuguesas foram "constantemente desprestigiadas pelas atitudes dos revoltosos que as desafiavam e insultavam, dançando em frente às viaturas, o que exigiu muito sangue frio e uma rigorosa disciplina".
Uma das primeiras ações dos grevistas/revoltados foi, também, rasgar e queimar as Cadernetas Indígenas (ver imagem da capa), que controlavam a vida, o trabalho e quaisquer movimentações dos “indígenas”.
As populações "passaram à acção violenta, tendo saqueado, destruído e queimado as instalações da Cotonang, as casas comerciais e os edifícios dos postos administrativos de algumas localidades (Marimba, Tembo-Aluma)”. Em Quela, segundo um relatório de 6 de fevereiro, a 4ª CCE “viu-se obrigada a abrir fogo, para defesa própria": "a bazuca abriu no meio deles uma grande clareira e, sob continuação da intensa metralha, o grupo foi caindo sempre a cantar (...) 71 mortos e 41 feridos entre os indígenas revoltados”.
A tropa mandada reprimir a revolta viu as suas viaturas ficarem atascadas nas picadas, tanto mais que as populações tinham destruído pontes e pontões sobre os variados cursos de água, isolando as forças militares. E deparou-se com muitas sanzalas abandonadas e, noutros locais, com enormes concentrações populares, que foram violentamente atacadas.
Algumas passagens dos relatórios portugueses:
• "verifiquei que junto à casa do soba estavam reunidos cerca de 10.000 indígenas, homens, mulheres e crianças, encontrando-se os homens armados";
• "esbofeteei o soba grande que caiu para o chão, mandando-o amarrar com os seus sobas e sobetas";
• "resultou a morte de 8 amotinados e muitos feridos, num total de 50 baixas”
• terão sido mortos em Teka dya Kinda 680 pessoas;
• Operação ‘Truta’ (região de Monte Papo) – resultados da ação aérea: foram confirmados 11 mortos e 21 feridos”;
• Operação ‘Raia’ (região de Muanha): Mandei abrir fogo, indicando como alvos principais o soba e os agitadores que estavam com ele; caíram todos e os outros, querendo reagir, foram abatidos também (…).resultado: 60 mortos e 80 espingardas e 150 catanas apreendidas"
A aldeia de Teca dia Kinda foi invadida por mais de cem viaturas cheias de tropas, que iam em direcção à Cunda dia Base. Encontraram a estrada obstruída por troncos de árvores e o então capitão Teles Grilo mandou abrir fogo de artilharia.
Morreram centenas de pessoas que estão enterradas em valas comuns. Em Teka dia Kinda existem túmulos à beira da estrada de pessoas massacradas.
Em Canzage existem várias valas comuns, onde em cada uma foram enterradas mais de cem pessoas.
E o certo é que, depois do massacre da Baixa de Cassanje, a PIDE/DGS intensificou as acções de busca contra os negros que tinham frequentado a escola.
UTILIZAÇÃO DA FORÇA AÉREA
O exército colonialista recorreu intensivamente à força aérea para dominar a greve e a revolta na Baixa de Cassange.
Para o efeito, utilizou, designadamente, dois tipos de aeronave (ver imagens):
• Auster D-5/160 (Auster Aircraft Co., Grã-Bretanha, também construídos sob licença nas OGMA - Oficinas Gerais de Material Aeronáutico)
• PV-2 Harpoon (Lockheed Aircraft Corp., EUA), que foram sujeitos, nas OGMA, a diversas modificações para a nova missão de bombardeiro tático e apoio próximo, armados com metralhadoras de 12.7mm, bem como para operar em Angola e Moçambique, num clima tropical.
A situação na Baixa do Cassange piorava de dia para dia. A 1 de fevereiro mais de um milhar de africanos concentraram-se na área de Cunda-Ria-Baza e no dia seguinte os europeus fugiram para Malange.
No dia 6 de fevereiro, a Força Aérea interveio pela primeira vez, com um PV-2 Harpoon que bombardeou em redor da picada em que tentava progredir uma coluna militar de Quela para Montalegre.
A 9 de fevereiro, um dos PV2 atacou “uma concentração hostil” na zona de Marimba, lançando uma bomba de 45 Kg a cerca de 150m de altitude, aparentemente sem espoleta de retardamento, o que originou perfurações em diferentes áreas do avião.
Oa aviões Auster começaram a utilizar oficiais do Exército como “bombardeiros” para dispersar grupos hostis. O oficial levava uma caixa de granadas defensivas entre os pés, que eram lançadas, uma a uma, sobre os bandos hostis. Em três dias, 18, 23 e 24 de fevereiro, foram realizados destes “bombardeamentos” causando baixas e pânico entre os bandos rebeldes.
As granadas eram também lançadas tirando-lhes a cavilha e metendo-as dentro de um jarro de vidro que, partindo-se no impacto com o chão, libertava a alavanca. Desta forma, artesanal, os aviões, relativamente lentos, não eram atingidos pela explosão, mas causavam ferimentos graves entre os grupos visados.
Frequentemente “as bombas enterravam-se na lama e não explodiam, frustrando os pilotos”.
Inicialmente, os pilotos avistavam concentrações das populações locais, mas não as viam como inimigas. A “situação foi corrigida” e os pilotos dos PV-2 passaram a fazer “demonstrações de fogo, lançamento de bombas e passagens a baixa altitude de maneira a dispersar os grupos”.
Durante a “Operação Cassange”, os PV-2 Harpoons realizaram 28 saídas da BA9 em Luanda e os Auster voaram muitas mais a partir de Malange.
CONCLUSÕES
Esta utilização de meios aéreos para esmagar a revolta da Baixa do Cassange constitui, seguramente, um dos maiores crimes do colonialismo português na segunda metade do século XX, desconhecendo-se, ainda hoje, o número de vítimas provocadas quer pelos meios terrestres, quer pelos meios aéreos.
As autoridade portuguesas admitem centenas de mortos mas nunca vão longe no detalhe, ignorando sempre os resultados dos bombardeamentos e preferindo desmentir os testemunhos existentes.
O major piloto-aviador José Ervedosa, que participou nas ações aéreas na Baixa de Cassange, vindo a desertar, referiu que 17 aldeias foram destruídas e cerca de 5.000 homens, mulheres e crianças terão sido mortas na Baixa de Cassange, designadamente pelo uso de bombas de napalm.
Quatro meses depois, a 2 maio de 1961, o ministro do Ultramar, Adriano Moreira, assinou o Decreto-Lei 43.639, que acabou com a cultura obrigatória do algodão nas actuais zonas algodoeiras, devendo decorrer "sob a orientação técnica da Junta de Exportação do Algodão" e, "fora das actuais zonas algodoeiras a cultura do algodão depende de autorização do governador da província, ouvida a Junta".
A 17 de junho, o mesmo ministro assinaria a Portaria n.º 18.539, que reabriu o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde.
Ver, em especial:
- Dossier Baixa de Kassanje, 1961, publicado no Novo Jornal, Luanda, 18 de janeiro de 2013;
Site http://4cce.org/index.html. da 4.ª Companhia de Caçadores Especiais, Angola, 1960-1962.