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A Banja da morte em Mueda

Data

ANTECEDENTES
ocorrências anteriores na circunscrição dos Macondes, a que foi atribuído carácter subversivo

No dia 27 de Abril de 1960, apresentaram-se na administração da circunscrição dos Macondes, no norte de Moçambique, seis homens e uma mulher provenientes do Tanganica (atual Tanzânia) que pretendiam realizar  uma “banja” (reunião ou assembleia) perto de Mueda para distribuir e vender cartões de "A Sociedade dos Africanos de Moçambique" (Sociedade com fins beneficentes, mas “apenas com o intuito, tudo indica, de mascarar actividades subversivas”).
Esses sete indivíduos atravessaram o Rovuma e dirigiram-se diretamente para Mueda, através de Mocímboa do Rovuma e da regedoria Bomela, “onde pernoitaram, apresentando-se na secretaria, onde foram mandados aguardar por não estar o administrador; no dia seguinte este castigou-os publicamente com palmatoadas, prendeu-os, e à noite mandou-os num camião para Porto Amélia”. 
Em 13 de junho, "apresentaram-se na administração da Circunscrição dos Macondes os indígenas Quibirite Divane e Faustino Ferreira Cesteiro Vanombe (ver imagem) acompanhados por algumas centenas de indígenas, solicitando autorização para fazerem propaganda da Sociedade dos Africanos de Moçambique" e “apresentaram vários pedidos, com carácter de reivindicações, respeitantes ao recrutamento de trabalhadores, serviço nas estradas, liberdade de deslocação, etc.” De notar, em especial, as declarações que fizeram contra a exigência feita pela administração da Circunscrição de os indígenas venderem a não indígenas galinhas e cabritos a preços extorsionários.
As centenas de indígenas que acompanharam Quibirite Divane e Faustino Vanombe, com o propósito de se oporem à sua prisão, exigiram a soltura dos 7 propagandistas detidos em 27 de Abril e de vários indígenas que julgavam estar presos, tendo o administrador soltado um tal Clemente. Desobedeceram à ordens para dispersar e só de tarde saíram da administração, escoltando os dois reclamantes.
A Sociedade dos Africanos de Moçambique queria, essencialmente, negociar com a administração portuguesa as condições de um regresso dos Macondes a Moçambique, desde que obtivessem as mesmas condições que usufruíam no Tanganica, designadamente sem trabalho forçado. Também o MANU, inicialmente denominado Maconde African National Union e, posteriormente, Mozambique African National Union, enviou representantes seus, que foram igualmente presos. 
Ambas as organizações, embora divergentes em muitos aspetos, queriam que os Macondes voltassem livres, queriam a terra livre, queriam, afinal Uhulu - liberdade.

A BANJA DA MORTE
o firme propósito de colocarem as autoridades sob coacção

No dia 16 de junho, isto é, três dias depois da apresentação de Quibirite e de Faustino, teve lugar, em Mueda, uma banja convocada pelo administrador da circunscrição dos Macondes, Garcia Soares, a pedido do governador do (então) distrito de Cabo Delgado, Almirante Teixeira da Silva, que queria falar aos Macondes. Estavam ali reunidos cerca de 5.000 indígenas, que esperavam ter a sua Uhulu:

“a) Às 14 horas teve início a banja com a chegada do Exmo.Governador do Distrito;
b) A bandeira que estava içada foi arreada para voltar a ser içada com todas as honras, mas a multidão mostrou-se desrespeitosa, mantendo-se sentada. O governador mandou repetir a cerimónia, depois de ter feito uma prelecção sobre o seu significado, mas o resultado obtido foi idêntico;
c) O governador misturou-se com a massa indígena, falando com uns e com outros, após o que, postando-se em frente das escadas da secretaria, convidou a falarem os que o quisessem fazer;
d) Tendo começado a chover, o governador abrigou-se na secretaria, tendo sido mandados subir para a varanda desta os indígenas que desejassem falar, bem como alguns que se tinham revelado como cabecilhas nos acontecimentos dos dias 13 e 14;
e) O governador, entretanto, mandou que o pelotão de infantaria se aproximasse de Mueda;
f) O governador chamou ao gabinete do administrador o Quibirite e o Faustino, bem como alguns indígenas, com os quais falou separadamente, vindo, em seguida, à varanda anunciar à multidão que o Faustino ficava preso, após o que regressou ao gabinete;
g) Pouco depois voltou o governador à varanda para anunciar a prisão de Quibirite, tendo ordenado a um funcionário que fosse dizer ao comandante do pelotão para avançar;
h) Entretanto eram presos alguns indígenas tidos como cabecilhas, sendo todos algemados, bem como o Faustino e o Quibirite, na varanda da secretaria; 
i) A turba enfurecida começou a protestar e cresceu para a secretaria; o governador e vários funcionários tentaram fazê-la recuar, mas não o conseguiram, tendo sido apedrejados e agredidos; como a multidão continuasse a avançar e fosse disparado um tiro - parece que para defender o governador de um indígena que pretendia apunhalá-lo - os cipaios abriram fogo sobre a multidão, tendo entrementes chegado o pelotão de infantaria que secundou a acção dos cipaios e dispersou a multidão. Houve mortos e feridos entre os assaltantes; nos que se encontravam na secretaria registaram-se alguns ferimentos causados por pedradas.”

Numa outra versão, da autoria de Michel Cahen, "o Almirante mandou prender a delegação, que foi algemada. A multidão avançou, um Maconde bateu com uma bomba de bicicleta no Governador e perguntou se alguém tinha uma faca. Godinho, encarregado da proteção do Almirante pegou na sua pistola e abateu o “atrevido”. Os padres brancos e o comerciante China gritavam para as pessoas se irem embora, mas elas avançavam para impedir o carro dos presos de seguir para Pemba. Os cipaios então fizeram fogo. Os dois jeeps que vinham, aos poucos, pela estrada de Chudi, chegaram nesse momento e o alferes também fez fogo. Algumas pessoas foram esmagadas pela fuga das outras. O governador de imediato saiu para Pemba com os presos.

No dia 18 de junho, uma curta nota oficiosa (ver imagem) dava conta do incidente, que era obviamente imputado a “agitadores vindos do Tanganica”, com a espantosa afirmação de que a a força pública “obrigou a retirar os intrusos, alguns dos quais foram agredidos pelo indígenas portugueses” – versão que seria naturalmente retomada no editorial do Diário da Manhã do dia seguinte.

Não se conhecem números exatos de mortos e feridos, aparecendo referidos dezenas ou centenas (ver imagem alusiva).

O certo, no entanto, é que estes acontecimentos em Mueda constituiram o verdadeiro ponto de partida da luta armada de libertação nacional, que seria iniciada quatro anos depois

»» O processo levantado pelo Instituto do Trabalho, Previdência e Acção Social de Moçambique contra dois homens considerados como os cabecilhas do "levantamento" de Mueda, Quibirite Divane (Kibiriti Diwane) e Faustino Vanombe, foi estudado por João Paulo Borges Coelho, apresentando informação detalhada sobre os acontecimentos ocorridos em Mueda em abril-junho de 1960. Foi desse estudo que se reproduziram as passagens referentes ao factos ocorridos.
»» Recorreu-se também ao estudo de Michel Cahen publicado em "As voltas do passado: a guerra colonial e as lutas de Libertação", de Miguel Cardina & Bruno Sena Martins (eds), Lisboa, Maio de 2018.
»» Refira-se, finalmente, o trabalho "Mueda Massacre: The Musical Archive", da autoria de Paolo Israel (Department of History, University of the Western Cape).