Desde o início, os inimigos de Amílcar Cabral sempre entenderam que ele deveria ser "eliminado" ou, em algumas versões mais fantasiosas, raptado e levado para Bissau. São diversas as tentativas de assassinato de Cabral, quase sempre com recurso a traidores e a infiltrados ou por intermédio de operações militares "audaciosas". A PIDE/DGS, por um lado, e as Forças Armadas portuguesas, por outro, alimentaram ou encabeçaram essas tentativas - que viam como única solução para o descalabro político, financeiro e militar da guerra colonial na Guiné.
A polícia política portuguesa manteve, ao longo do tempo, intensa atividade de "informações", recorrendo insistentemente aos serviços congéneres de França, que era a antiga potência colonial do Senegal e da República da Guiné e também aos serviços secretos de outros países ocidentais. Neste contexto, aparecem igualmente identificadas atividades de serviços secretos alemães. E não se esqueça a presença no contexto da Guiné de serviços de informações da URSS, de Cuba e de outros países da mesma área política.
Este quadro genérico era, pelo que se sabe hoje, desprezado pelo próprio Cabral, que recusava quase sempre ser acompanhado por guarda-costas e não tomava visivelmente medidas de segurança adequadas.
Como recorda Ana Maria Cabral (1), o ataque a Conacri da operação Mar Verde, em novembro de 1970 - que fez diretamente fogo sobre a casa onde vivia Cabral - era sinal de que "os colonialistas já tinham tido essa coragem de ir até lá, devíamos ter tido isso em conta, que já que tinham tido a coragem de ir até lá, portanto, poderiam tentar organizar coisas piores."
Ou como afirma Pedro Pires (2), o próprio "Amílcar Cabral já nos tinha alertado sobre a probabilidade desse risco a partir da recolha de várias informações recebidas de amigos no seio do Exército português. (...) Considero que falhamos porque os nossos serviços de informação e segurança trabalharam mal as informações recebidas (...) e o próprio Amílcar Cabral não teria dado o valor necessário e tomado mais medidas de precaução que o risco exigia" (...) "agimos de forma pouco precavida, superficial e subjetiva".
Oiça aqui as palavras finais da mensagem de Ano Novo de 1973 de Amílcar Cabral
Entre a ficção e a realidade, registem-se algumas declarações contraditórias:
"O general Spínola tinha uma grande admiração pela figura de Amílcar Cabral. Aliás, tinha pensado nele para secretário-geral da província logo quando aceitou o cargo..." (Testemunho do embaixador Nunes Barata). Mas o certo é que o secretário-geral da Guiné "portuguesa" era então o general Pedro Cardoso, futuro chefe, após 25 de abril de 1974, da 2.ª Divisão/EMGFA).
Aquele mesmo general Spínola afirmaria, em 4 de janeiro de 1989, que na Operação Mar Verde "estava vedada a hipótese da morte de Amílcar Cabral que deveria ser aprisionado e conduzido para Bissau". Mas, na realidade, "um dos 25 "objectivos essenciais" da operação era "o assassínio de Amílcar Cabral" (3).
Falhado, em 1970, o cumprimento desse objetivo, será longamente construída uma conjura visando eliminar ou neutralizar Amílcar Cabral, envolvendo elementos que integravam o PAIGC - aproveitando questões internas do partido e, sobretudo, a longa duração da guerra (que, em 1973, já levava 10 anos) e a que muitos combatentes queriam, naturalmente, pôr fim, parecendo alguns deles estar disponíveis para aceitar "soluções" mais ou menos aprazíveis dos colonialistas, sempre excluindo o arquipélago de Cabo Verde.
Quem participou mais diretamente nessa conjura? Rafael Barbosa e Momo Touré (ambos "libertados" pela PIDE/DGS do campo de concentração do Tarrafal a troco de declararem a sua adesão ao poder colonial), Inocêncio Kani, que disparou sobre Amílcar Cabral, João Tomás Cabral, Mamadú Indjai, Koda Nabonia, etc.
Amílcar Cabral regressava de uma recepção na embaixada da Polónia quando foi surpreendido por alguns desses homens. Que o tentaram amarrar, muito provavelmente para o levar para Bissau, como o fizeram também a Aristides Pereira, salvo in extremis pela interceção por um barco soviético da embarcação que o transportava para fora das águas territoriais da República da Guiné.
Cabral resistiu: "por isso mesmo é que eu estou a lutar, para que deixemos de amarrar as pessoas, o ser humano não pode ser amarrado, a mim ninguém me poderá amarrar, se há problema, vamos sentar, vamos discutir, vamos conversar, eu prefiro ser morto a ser amarrado" (citado por Ana Maria Cabral).
A verdade é que Cabral teria recebido, pouco antes, a visita de dois diplomatas amigos (ao que tudo indica, elementos dos serviços de segurança da embaixada da Checoslováquia em Conacri). que o informaram acerca de rumores de que um possível atentado contra a sua vida estaria a ser orquestrado. Também a delegação da FRELIMO, chefiada por Samora Machel, que tinha chegado a Conacri, trazia informações no mesmo sentido.
Como e por quem foram corrompidos e instigados aqueles combatentes do PAIGC? Quem lhes indicou como alvo os alegados "cabralistas", que foram aprisionados e logo ameaçados de fuzilamento? Quem lhes encomendou, com prioridade, que "amanhã teríamos de dar a eles toda a documentação do partido de Cabral"? (Ana Maria Cabral). E, sobretudo, a quem mais interessava a eliminação de Amílcar Cabral?
Hoje, num admirável exercício de ginástica artística, todos parecem admirar Cabral, como se a realidade da guerra colonial não tivesse existido, como se não estivessem ali dois campos antagónicos. E, concomitantemente, disparam as suas armas para isentar o exército colonial e a PIDE/DGS e para insinuar, sem apresentarem quaisquer provas, que, afinal, quem instigara o crime fora Sekou Touré...
E tudo isto se passa numa nebulosa de informação/desinformação que ora sublinha que o PAIGC estava amplamente infiltrado pela PIDE/DGS, ora escamoteia qualquer intervenção no assassinato dessa polícia e dos seus mandantes. Assim, na verdade, preferimos recordar o que dissera Cabral três anos antes e o que recordou Mário Pinto de Andrade escassos dias após a sua morte:
até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde
Camaradas, eu jurei a mim mesmo, nunca ninguém me mobilizou, trabalhar para o meu povo, eu jurei a mim mesmo, que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo.
Este é que é o meu trabalho.
Tenho feito o máximo para conseguir isso, não por causa de trabalhar só eu, mas porque tenho sabido encontrar homens e mulheres para trabalharem comigo. E tenho procurado, na medida do possível, passar para a sua cabeça, para o seu coração, para o seu sentimento, para o seu pensamento, tudo aquilo que posso realizar como homem, toda a minha consciência. E só assim é que podemos valer, como militantes verdadeiros do nosso Partido, como lutadores para o progresso do nosso povo, camaradas.Intervenção de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, realizado em novembro de 1969, citada por Mário Pinto de Andrade na palestra intitulada "A geração de Cabral", que proferiu na Escola-Piloto, em 8 de fevereiro de 1973, escassos dias após o assassinato de Amílcar Cabral.
Oiça a música Amílcar Cabral, interpretada pelo grupo "Korda Skrabu", disco LP editado em 1974 pelo PAIGC
Leia o texto "Meio século sem Cabral", de Jorge Montezinho,
originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1103, de 18 de Janeiro de 2023.
(1) Entrevista de Ana Maria Cabral a Diana Andringa para o programa "Geração de 60"
(2) In "Comandante Pedro Pires - Memórias da luta anti-colonial em Guiné-Bissau e da construção da República de Cabo Verde", Entrevista a Celso Castro, Thais Blank e Diana Sichel, FGV Editora, 2021.
(3) Citado por José Matos e Mário Matos e Lemos, "Ataque a Conakry-História de um Golpe Falhado", Fronteira do Caos, Porto, 2020.