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Arquivo Amílcar Cabral

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Preservar a memória, construir o futuro

O conflito poilítico-militar ocorrido na Guiné-Bissau em 1998-1999 colocou em sério risco a própria existência dos arquivos referentes à luta de libertação nacional e, em especial, os Documentos Amílcar Cabral.

A historiadora Iva Cabral, que conhecia o trabalho desenvolvido em Lisboa em matéria de salvaguarda de documentos históricos e, designadamente, o tratamento em curso do Arquivo de Mário Pinto de Andrade, estava então em Bissau, onde desenvolveu intensos esforços de organização da documentação de seu Pai, à guarda do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), após a sua transferência de Conacri.

No seguimento dessa intervenção, representantes do Governo de Unidade Nacional da Guiné-Bissau e da Junta Militar constituída contactaram a então Fundação Mário Soares com o objetivo de viabilizar a salvaguarda desse espólio, fundamental não apenas para a História e a Cultura da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, como também de toda a Africa e do relacionamento com Portugal, como antiga potência colonial.

Com o empenho pessoal do Dr. Mário Soares, foram mobilizados os meios que tornaram possível uma intervenção imediata (no primeiro avião que voou para o aeroporto de Bissalanca, que tinha sido alvo de combates e bombardeamentos).

A equipa de 3 pessoas que se deslocou a Bissau, em agosto de 1999, ficou alojada, por razões de segurança, nas instalações da CTM (Cooperação Técnico-Militar portuguesa) e trabalhou em instalações afetas à Presidência da República, que possuíam um gerador suficiente para as tarefas programadas (Bissau não possuía, à época, energia elétrica estável). O Embaixador português recém-nomeado, António Russo Dias, assegurou também o necessário apoio logístico.

Em Bissau, com a participação permanente de Iva Cabral, foi possível iniciar a reprodução digital e fotográfica da documentação recuperada da sede do PAIGC, que entretanto fora vandalizada e onde, em especial, se encontraram provas evidentes da procura (falhada!) da documentação de Cabral e da destruição de pastas de arquivo onde essa documentação estivera previamente guardada.

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No dia 11 de Agosto de 1999, "considerando as condições difíceis em que essa documentação se encontra, correndo sérios riscos de destruição", foi assinado um Protocolo de Cooperação entre o Governo de Unidade Nacional da República da Guiné-Bissau, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde e a então Fundação Mário Soares, em que foram definidas as metas do trabalho em curso e estabelecidas as metodologias a serem utilizadas no seu prosseguimento. Firmaram esse protocolo Francisco José Fadul, Primeiro-Ministro da República da Guiné-Bissau, Flávio Giselo Proença, ao tempo Secretário Permanente do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde e Alfredo Caldeira, em representação da Fundação Mário Soares.

Foi com este protocolo que avançou o trabalho, acordada que foi a transferência provisória para Lisboa de alguma documentação. Em simultâneo, a restante documentação foi encerrada num cofre de um banco, em Bissau, com vista a garantir a sua segurança.

Em Portugal prosseguiu o tratamento desses documentos, com a participação da Dra. Iva Cabral. Entretanto, a situação na Guiné-Bissau conheceu alguns problemas e o próprio banco em que se depositara a documentação encerrou as suas instalações... tendo sido, por isso, necessário proceder à remoção de todo o material ali depositado e, posteriormente, com o acordo das várias entidades intervenientes, o seu transporte para Lisboa para integração no projeto de tratamento em curso (ações de conservação, digitalização e descrição de todo esse universo documental agora reunido).

Importa, no entanto, sublinhar que a documentação tratada não corresponde integralmente ao que terá constituído o arquivo de Amílcar Cabral, enquanto secretário-geral do PAIGC e que, como já referido, foi transferido de Conacri para Bissau, após a independência da Guiné-Bissau. Com efeito, sabe-se que foram dele retirados documentos de âmbito militar e de segurança, sendo notório, por exemplo, a ausência de mapas e cartas militares - documentação essa que terá sido transferida para os respetivos departamentos e que, no entanto, nunca foi possível inventariar. Por outro lado, os acessos que o espólio terá conhecido ao longo do tempo poderão ter contribuído para algumas incongruências organizativas e, mesmo, algumas falhas documentais. E, finalmente, as tentativas de destruição/saque em 1999, embora falhadas no essencial, terão seguramente provocado o desaparecimento de documentos (sabendo-se, aliás, que apareceram à venda nas ruas de Bissau alguns documentos ditos "de Cabral"). Do mesmo modo, muitas das fotografias que nele estavam incorporadas foram deitadas ao chão, pisadas (apresentando inclusivé rastos de pneus) e mesmo queimadas.

Ainda assim, o Arquivo Amílcar Cabral que se conseguiu salvaguardar é um dos mais importantes espólios documentais das lutas de libertação africanas - conforme bem se verifica ao avaliar o elevado número de estudos que, em diferentes países, nele se têm baseado, a partir do momento em que foi digitalizado e disponibilizado online na plataforma casacomum.org.

Por outro lado, à medida que o arquivo foi sendo tratado, com o apoio de numerosas pessoas e instituições, designadamente na identificação de documentos e personagens, a sua documentação foi divulgada em diversas exposições sobre Cabral ou em que era referenciado. O Arquivo em suporte digital incorporou, por outro lado, documentos de diferentes origens, que o enriqueceram e completaram séries em falta. Foi assim também possível, por expressa orientação do Dr. Mário Soares, compartilhar com diferentes entidades cópias digitais de numerosa documentação.

Em termos necessariamente breves, esse arquivo é constituído por documentação produzida por Amílcar Cabral no exercício das suas funções como secretário-geral do PAIGC e por documentação relacionada com o funcionamento do partido e com o seu relacionamento internacional. Os documentos, de natureza política, militar e diplomática, englobam apontamentos diversos de Cabral, alguns dos seus estudos e trabalhos agrários, textos políticos da sua autoria, extensa documentação de carácter epistolar com responsáveis políticos e militares, correspondência diversa trocada com elementos do povo, documentação relativa à intensa atividade político-diplomática desenvolvida e ainda documentos e publicações de diferentes organizações anticoloniais (como o MAC, FRAIN, CONCP e UGEAN) e de diferentes movimentos de libertação das colónias portuguesas, com especial destaque para o MPLA e a FRELIMO.

Nas vésperas do Centenário do nascimento de Amílcar Cabral, em 2024, considera-se urgente a definição das condições em que este Arquivo possa estar entregue aos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, melhorados também os seus descritores e informação contextual, completado com diversa outra documentação entretanto identificada e amplamente disponibilizado para o seu estudo e divulgação.

 

Alfredo Caldeira

31 de dezembro de 2022