Em fevereiro de 1953, agitando o perigo de uma conspiração comunista visando criar um governo dos nativos na então colónia portuguesa de S. Tomé, o governador Carlos Gorgulho fomentou uma onda de repressão que resultou num número ainda hoje indeterminado de mortos.
Muitos foram abatidos a tiro, em verdadeiras caçadas levadas a cabo por milícias de voluntários. Diversos foram queimados. Alguns morreram asfixiados em celas demasiado pequenas para o número de presos que continham. Muitos foram sujeitos a trabalhos forçados na praia de Fernão Dias. Um dos castigos consistia em «esvaziar o mar»: presos com correntes, eram obrigados a entrar no mar para encher grandes selhas de água salgada, apenas para as despejar em terra, pouco depois.
Um dos sobreviventes, o senhor Francisco Bonfim, contou que foi preso a 10 de fevereiro, com outros funcionários: “Meteram-nos num jipe e fomos para Fernão Dias. Ali o Zé Mulato deu ordem para nos acorrentar. Puseram-me a cabeça na bigorna, cravaram-me uma corrente ao pescoço, outras na cintura e nos tornozelos e fui mandado “esvaziar o mar”, com uma pipa - um barril de 200 litros cortado ao meio. Prenderam-me uma corda à cintura, que outro preso segurava enquanto eu entrava no mar. Foi assim todo o dia. À noite fui para a cela, e apareceu um preso com um papel, a dizer que o Sr. Zé mandou dizer para escrever tudo sobre a guerra da Trindade. “Mas eu não sei nada!” “Sabe, todos os funcionários sabem. Vocês querem matar o governador e pôr o engenheiro Salustiano.”
Bonfim escreveu, mas não foi suficiente: “O preso voltou com o papel, porque o Zé Mulato tinha dito que não chegava: “Tem de dizer que foi assim.” Lá vou escrever. No dia seguinte voltei a esvaziar o mar. No 2º dia, na praia, apareceu o Sr. Gorgulho e o polícia disse-me: “Está ali o Sr. Governador. Vai lá ter.” E eu aproximei-me e disse: “Sr. Governador, o que é que eu fiz, para estar aqui, acorrentado?” E ele disse: “Você está a fazer teatro. Esteve numa reunião. Com o sr. Pedronho, Teixeira, queriam matar todos os brancos e pôr o eng. Salustiano no meu lugar.” “Isso nunca aconteceu!” “É verdade, é tão verdade como vocês terem morto o Amaral a machim. E com se mataram com machim são selvagens, trato-vos como selvagens. Já não são funcionários. Já fiz uma portaria exonerando todos vocês. Durante os 4 anos que vou estar em S. Tomé, daqui não sais.”
Entretanto, o preso que segurava a corda quando ele ia ao mar encher a pipa perguntou-lhe se ele era o Bonfim que jogava futebol. Quando soube que sim, disse-lhe que não fosse tão longe no mar, nem enchesse tanto a pipa. À noite, na cela, voltou o homem do papel: “Sr. Zé diz que não chega, tem de escrever mais.” Bonfim voltou a escrever. O próprio Zé Mulato foi à cela: “Tens de escrever, nós sabemos tudo, o sr. Pedronho, o sr. Teixeira já disseram que você esteve numa reunião.” “Completei mais a mentira”, resumiu o Sr. Bonfim. “E no dia seguinte fui para a cidade.”
Nessa noite, vieram buscá-lo à cela e levaram-no à Polícia, onde viu caras que nunca tinha visto em S. Tomé: “Vem cá para confirmar o que disse em Fernão Dias.” “O que eu escrevi em Fernão Dias é tudo mentira, obrigaram-me a mentir.” Então levaram-no para outra sala, onde estava outro conterrâneo, dizendo: “Aqui o seu amigo diz que o senhor esteve numa reunião.” “E eu disse ao senhor: “Eu penso que vieram a S. Tomé para saber a verdade. A verdade é o que eu lhe disse. Tudo isto que eu escrevi é mentira, fomos obrigados a mentir. Mas se quer que eu continue a mentir, eu volto a mentir.” Então ele perguntou onde é que eu fui educado. “Nunca saí daqui, tenho a quarta classe.” Voltei para a cela, estive uns dois meses, até que saímos todos em liberdade.”
Interrogados sob tortura, chicoteados, submetidos à utilização de uma cadeira eléctrica, muitos presos foram obrigados a confessar o seu envolvimento numa revolta que, segundo Gorgulho, pretenderia matar o governador e os colonos e distribuir entre si as mulheres brancas. Mais tarde, a própria PIDE havia de negar a existência da conspiração referida pelo governador.
E, ao contar-me os tormentos por que passara, foi nesse momento que o senhor Bonfim se emocionou: “O que me custou mais foi ter sido obrigado a mentir!”
A intervenção, a pedido de alguns santomenses, do advogado Manuel João da Palma Carlos, permitiu clarificar a inventona e levar à destituição de Gorgulho. Um conjunto de fatores ajudou a que os massacres em São Tomé se tornassem rapidamente conhecidos no exterior. Alda Espírito Santo, que regressara de Lisboa pouco antes, a 9 de janeiro, e vai secretariar o advogado Palma Carlos na sua investigação, faz chegar as notícias aos amigos do Centro de Estudos Africanos e habituais visitas da sua casa de Lisboa, no nº 47 da Rua Actor Vale:
“Confesso-vos que, se eu não estivesse cá a viver, a ver e sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos, eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero. Eu desejo fazer uma exposição simplesmente baseada em dados concretos para que façais sentir aí todo o estendal de crimes que se passou aqui, porque é impossível que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passou não foi mais do que uma matança em série, uma loucura colectiva de parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos.”
Ainda em 1953, o massacre é denunciado num folheto em língua francesa, com fotografias das milícias formadas por colonos e também por auxiliares negros, tendo esta a seguinte legenda: “Os trabalhadores forçados importados das outras colónias portuguesas foram obrigados a participar no massacre.”
No número de abril/julho de 1955, a revista Présence Africaine publica o artigo "Massacres à São Tomé", assinado por Buanga Fele (pseudónimo de Mário Pinto de Andrade), onde é patente o mesmo cuidado de evitar a divisão entre “autóctones” e trabalhadores vindos de outras colónias: “A máxima ‘dividir para reinar’ teve aqui também o seu papel. Os grandes proprietários incitaram os trabalhadores forçados negros à pilhagem e mesmo ao combate contra os autóctones.”. E, no seu penúltimo parágrafo, Mário profetiza a permanência na memória coletiva dos mortos de 53: “todos esses homens destruídos pela pilhagem e a pirataria dos representantes dos primeiros “colonizadores” do continente negro se erguem como acusadores.”
Em Janeiro de 1961, Mário Pinto de Andrade reedita, em Conacri, a sua coletânea “Poetas Negros de Expressão Portuguesa”, onde inclui o poema de Alda Espírito Santo, “Onde estão os homens caçados neste vento de loucura” (“O sangue caindo em gotas na terra/ homens morrendo no mato/ e o sangue caindo, caindo…/ Fernão Dias para sempre na história/ da Ilha Verde, rubra de sangue, /dos homens tombados/ na arena imensa do cais.”… (…) Nossas vidas enterradas/ nos campos da morte, /os homens do cinco de Fevereiro/ os homens caídos na estufa da morte /clamando piedade/ gritando pela vida,/ mortos sem ar e sem água/ levantam-se todos/ da vala comum/ e de pé no coro de justiça/ clamam vingança...)
Também em 1962, Miguel Trovoada, num depoimento em Rabat, volta a sublinhar a necessidade de fazer justiça aos mortos de 1953: “O sangue vertido pelos inocentes, os órfãos, as viúvas, reclamam impacientemente por justiça. É todo um povo sofredor que reclama justiça, essa justiça que o colonialismo nunca lhe poderá dar.”
Na praia de Fernão Dias foi erguido após a independência de São Tomé e Príncipe, um memorial em honra dos mártires do massacre de 1953, mas seria demolido em agosto de 2009, com a desculpa do início dos trabalhos de construção do porto de águas profundas …
Leia-se, em especial, A Guerra da Trindade, de Carlos Espírito Santo, Lisboa, 2003